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Entrevista com Keira Jacquart para o Dia da Visibilidade Trans (Boletim IF em Movimento mar/21)

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Publicado: Quarta, 24 de Março de 2021, 12h09 | Última atualização em Quarta, 24 de Março de 2021, 20h29 | Acessos: 936

Em 29 de janeiro comemora-se no Brasil o Dia Nacional da Visibilidade Trans e para entendermos um pouco mais sobre o assunto, convidamos a Keira Jacquart para escrever um texto autobibliográfico, e dentro uma perspectiva poética, sobre a vida de uma mulher trans. Keira Jacquart nasceu na Bélgica. Ela é cantora, modelo e transativista, com foco em temas como “Vidas Trans Negras Importam”. Durante sua transição, ela encontrou pessoas marcantes que a inspiraram e moldaram sua vida. “Todos merecemos viver a vida completamente e sermos vistos como somos”. Como metáfora ela diz: “Transicionar de uma lagarta para uma linda borboleta que bate suas asas em um mundo livre.”

 

 

História de vida de Keira Jacquart:

Deixe-me apresentar Senhorita Keira Jacquart em três palavras: sonhadora, visionária e criativa. Isso definitivamente soa como Peixes, certo?

Desde que me lembro, sempre me senti presa no corpo errado, enquanto calçava as botas da minha mãe e dançava uma das músicas das Spice Girls. Sim, Posh Spice ainda é meu nome do meio até hoje. Eu definitivamente era uma ‘Wannabe’[1] em todos os sentidos da palavra; Eu queria usar o pequeno vestido Gucci da Sra. Beckham.

Eu teria arrancado de suas mãos, mas mais uma vez a violência não é a solução, a qual, infelizmente, hoje em dia, muitos indivíduos transgêneros de cor têm que lidar; estupro, assassinato, ser renegado por sua família ou mesmo pela sociedade.

 

Havia duas coisas que eu queria ser quando era mais jovem: professora em uma escola, porém logo percebi, depois de um ano estudando na Universidade de Ghent, em 2012, eu não tinha a paciência nem o interesse em ensinar adolescentes com uma atitude difícil, sim, bem-vindo ao século 21.

Eu também queria me tornar uma Spice Girl, mais uma vez me recusei a fazer parte da turnê de reunião em 2019, por causa da minha marca de moda de sucesso.

Cantar é com certeza uma das minhas paixões, ao lado de fazer compras, assistir a desfiles de moda e meu amor por maquiagem. Vamos adicionar minha loucura por comida e por passeios pelas cidades da Europa, que tentei fazer a cada três meses. Adeus poupança ...

 

Que época mágica foi viver nos anos 90, de Xena, a Princesa Guerreira, às irmãs Halliwell da WB ‘Encantada’.

Eu sempre me vi como uma garota com um grande amor por tudo que brilhava, de usar esmalte de unha da minha mãe no meu dedinho, até me sentir desconfortável por ter que me trocar no vestiário dos meninos com meninos, eca, certo? Sempre senti a necessidade de me cobrir e isso era pura tortura para minha alma inocente.

 

Quando eu tinha cerca de seis anos, tivemos que nos desenhar da maneira como nos víamos. Lembro-me nitidamente daquele desenho que eu era uma garota com um vestido rosa, sim, um vestido rosa como a Barbie.

Para mim, isso foi completamente normal e eu, quando olho para trás, acho que foi quando Keira já entrou em cena, ela estava sorrindo e brilhando como a Sininho.

 

Sinto que Kevin (meu apelido morto, como dizem na comunidade transcomunitária) e Keira são entidades completamente diferentes.

Kevin era uma criança muito sensível, que sofria bullying porque tinha modos e interesses muito femininos, aos quais os meninos podiam facilmente se sentir alienados.

Tive a sorte de ter sido abençoada com uma rica imaginação, de onde pude escapar da vida cotidiana e de todas as vantagens e desvantagens que vêm com isso.

Minha cor favorita era o amarelo, sim, a Power Ranger Amarela chamada Trini. A atriz Thuy Trang era originária do Vietnã e era uma jovem bonita e vibrante.

Senti uma ligação estranha com a personagem, porque mais uma vez ela tinha um comportamento masculinizado, embora era uma menina. Um lugar seguro, pensei assim.

Obcecada por essa cor, mas temerosa por vespas e abelhas: a ironia de tudo isso.

 

Eu não gostava de ir à escola porque essas pessoas tornaram minha vida na escola um inferno. O efeito psicológico veio muito mais tarde, quando cheguei ao ensino médio. Ter que lidar com ataques de pânico, ansiedade e dismorfia de gênero, que eu não aceitei e bloqueei, até que explodiu mais tarde na minha cara. Em um transtorno alimentar, chamamos de anorexia.

 

Para mim, pessoalmente, não tinha nada a ver com a comida, eu sentia que era mais com a mudança do meu corpo e nos pelos corporais, que eu ainda em qualquer corpo humano não acho atraente.

Eu precisava de controle, mas como, querida Keira, você espera se controlar se nem mesmo aceita a mulher que é?

Sim, uma mulher, talvez não nascida biologicamente, mas me senti como uma mulher. Pelo menos a Keira que ficou presa em uma gaiola, sem ter para onde correr, além de ver uma jovem perdendo sua energia vital e sua família vendo uma pessoa sendo dilacerada.

Eu não dormia nada durante a noite, me sentia extremamente cansada e com frio, mas também minhas emoções pareciam entorpecidas.

Ter 17 anos e ter que lidar com um transtorno alimentar, do qual meus pais e eu não sabíamos de onde vinham as raízes.

Lembre-se daquela criança inocente sendo intimidada e não tendo o direito de se expressar em sua verdade. É de onde veio e onde começou a se tornar uma bomba-relógio.

 

Em 2013, conheci Chris del Anno e Nathan Lassyri. Lembre-se das adolescentes com atitude também conhecidos como as Meninas Superpoderosas.

Eu provavelmente teria sido Blossom, a líder e a garota feminina do grupo. Você também poderia dizer que eu seria o maníaco por controle ou gerente de RP, por causa de minha mente de negócios e minha personalidade destemida, nos conectamos com produtores, empresários, treinadores de canto, coreógrafos e a lista continua ...

 

Entrei em contato com Chris e Nathan nas redes sociais e queria criar um grupo musical. Chamamos a nós mesmos no início de Magenta Blue, não me pergunte o porquê, mas acho que as duas cores representavam feminilidade e masculinidade. Eventualmente, nos chamamos de DAMORE.

 

Então, nos conhecemos em agosto de 2013. Naquele dia eu estava usando um blazer cinza com calça da mesma cor, porque Srta. Jacquart é tudo sobre bloqueio de cores. Tinha uma coisa com gola rolê, ainda hoje meu armário está cheio desse modelo de roupa. Sempre achei que precisava estar no meu melhor e estar pronta para a passarela.

Na verdade, eu e Nathan estávamos no mesmo trem para Ostend. Ele tinha um cabelo amarelo brilhante como do Bob Esponja, lentes de contato castanho-avelã, um colar com um pinjente do símbolo da paz e uma blusa de leopardo cinza. Sua energia era avassaladora e eu senti um eco de ‘Girl Power’ em minha cabeça. Senti imediatamente o calor da voz de Nathan, uma voz de alma muito baixa e sua risada era agradável.

Conversamos por alguns minutos antes de nosso trem chegar e então fomos nos encontrar com Chris e sua "suposta" sobrinha ...

Chris estava calmo e controlado, um grande contraste com nossas futuras reuniões. Chris é a vida da festa e ele adora cantar, uma voz muito poderosa, na minha opinião. Naquele dia de agosto, ele estava usando um gorro cinza e uma camiseta lisa com listras horizontais pretas e brancas. Chris tinha apenas dezesseis anos naquela época, Nathan tinha 19 e eu cerca de 22. Éramos bebês, inocentes e um pouco ingênuos. Mas tínhamos fogo em nós e queríamos mudar o mundo para melhor.

Acho que foi nesse momento que voltei para casa e senti que conheci minha segunda família.

 

Namorar como uma mulher trans também traz desafios. Sinto pelos homens que têm uma “atração por trans” sem que seja um fetiche, mas que estão alinhados com sua própria sexualidade.

Homens heterossexuais são atraídos por mulheres trans, não por homens gays. Acho que na comunidade gay todos se resumiam a ser extremamente masculinos, em forma e altos.

Muitos desses homens não têm as ferramentas para lidar com essa atração. Eles estão sendo julgados ou colocados em uma caixa.

Por outro lado, também há homens que chamamos na gíria: homens baixos. Eles só querem ter uma relação sexual com mulheres trans, sem que sejam vistos com elas em público.

Infelizmente, porque muitos homens não conseguem se expressar, eles às vezes matam essas mulheres trans por quem se sentem atraídos. Esse é definitivamente o caso de muitas mulheres transexuais negras.

 

Gostaria que houvesse alguma informação para crianças ou indivíduos que lidam com dismorfia de gênero.

Lidando com as lutas internas e expressando isso para uma sociedade, onde os indivíduos trans estão sendo marginalizados ou demolidos, apenas por viverem suas vidas em sua verdade.

Então, eu senti que vivi a vida por boas duas décadas em um piloto automático, infelizmente isso ainda é a realidade hoje para as pessoas sobreviverem, não viver, mas sobreviver.

Um grande contraste onde estou hoje. Keira é uma jovem confiante, com um futuro brilhante pela frente, porque ela nunca será uma vítima da sociedade ou de pessoas que jogam suas inseguranças nela.

Ela é uma Rainha das Divas e uma guerreira porque, às vezes, eu sinto que o mundo ainda não está abraçando totalmente indivíduos trans ou não binários.

 

Eu sempre digo às pessoas que ser uma mulher transgênero é uma bênção e uma maldição ao mesmo tempo. Em muitos níveis, posso entender a definição de discriminação ou fobia, porque ser você e viver sua vida de acordo com sua visão traz desafios. Ser encarado como fora dos padrões de gênero ou mesmo heterossexual por não saber como se comportar em um lugar público ou em um ambiente de trabalho, imagine ser perseguido como um homem gay.

Também sinto que é uma maldição não poder ter filhos com quem amo e receber um presente dado por Deus.

É uma constatação que fiz quando fiz a transição, não sabia se tinha a ver com os hormônios que corriam pelo meu corpo ou simplesmente com a idade. Talvez seja uma mistura dos dois.

Eu tinha esse sentimento de mãe e queria ter filhos com um homem que amo, com toda a minha essência.

 

 

ORIGINAL:

Keira Jacquart life story:

Let me introduce ms Keira Jacquart in three words: dreamer, visionair and creative. That definitly sounds like a Pisces, right?

From as young as I can remember I have always felt trapped in the wrong body, while I was putting my moms boots on and dancing on one of the songs of the Spice Girls. Yes Posh Spice is still to this day one my middle name. I definitly was a ‘Wannabe’ in every sense of the word; I wanted to wear the little Gucci Dress from ms. Beckham.

I would have ripped it off of her hands, but yet again violence is not the solution, in which saddly enough tot this day a lot of transgender individuals of colour have to deal with; rape, murder, being disowned by their family or even society.

 

There were two things I wanted to become when I was younger: a teacher in a school, in which I soon realized after a year studying on the University of Ghent in 2012: I didnt have the patient nor the interest in teaching teenagers with an attitude, yes welcome to the 21st century.

I also wanted to become a Spice Girl, yet again I refused to be part of their reunion tour in 2019, because of my quote-on-quote succesfull fashionbrand.

Singing is most definitly one of my passions, next to shopping, attending fashionshows and my love for make-up. Lets add my foodorgasms and citytrips in Europe, that I tried to do every three months. Goodbye saving accounts…

 

What a magical time it was to live in the nineties from Xena the Warrior Princess to the Halliwell sisters of the WB ‘Charmed’.

I always saw myself as a girl with a big love of everything that sparkled to wearing nail polish from my mom on my little pinky to feeling uncomfortable having to change in the boys lockerrooms with boys, yuck right? I always felt the need to cover myself up and that was pure torture for my innoncent soul.

 

When I was around six years old we had to draw ourselves with how we look at ourselves. I remember vividly from that drawing that I was a girl in a pink dress, yes a pink dress like Barbie.

For me this was completely normal and I when I look back on it. I think thats when Keira already  stepped in, she was smiling and glowing like Tinkerbell.

 

I feel that Kevin (my deadname as they say in the transcommunity) and Keira are completely different enthities.

Kevin was a very sensitive child, that got bullied because he had very feminine manners and interests in which boys could easily feel alienated from.

I was lucky to have been blessed with a rich imagination where I could escape everyday life and all the perks and the lows that come with that.

My favorite colour was yellow, yes the Yellow Power Ranger called Trini. The actress Thuy Trang was originally from Vietnam and she was a beautiful vibrant young woman.

I felt a weird connection with the character, because yet again she had a boyish behaviour, she was still a girl. A safe place I thought so.

Obsessed with this colour, but fearfull for wasps and bees: the irony of it all.

 

I didn’t like going to school because these individuals made my life on school hell. The psychological effect came way later when I hit Middle School. Having to deal with panic attacks, anxiety and gender dysmorphia that I didnt accept and blocked, until it exploded later in life in my face. In an eating disorder we call anorexia.

 

For me personnally had nothing to do with the food, I felt it was more with my body changing and bodyhair, that I still in any human body find not appealing.

I was in need of control, but how dear Keira do you expect to control yourself if you don’t even accept for the woman you are?

Yes a woman, maybe not born biologically, but I felt like a woman. Atleast the Keira that got trapped in a cage, with not where to run besides seeing a young individual losing her life energy and her family seeing someone being teared apart.

I didn’t sleep at all during the night, felt extremely tired and cold, but also my emotions felt numbed.

Being 17 and having to deal with an eating disorder, where both my parents and I didn’t knew where the roots came from.

Remember that innoncent child being bullied and not having any right to express him/herself in their truth. Thats where it came from and where it started to become a ticking timebomb.

 

In 2013 I met Chris del Anno and Nathan Lassyri. Remember the teenagers with attitude aka the Powerpuff Girls.

I probably would have been Blossom, the ringleader and the girly girl of the group. You could also say the control freak or PR manager, because of my business mind and my fearless personality we connected with producers, managers, singing coaches, choreographers and the list goes on...


I contacted both Chris and Nathan on social media and wanted to make a musicgroup. We called ourselves in the beginning Magenta Blue, don’t ask me why, but I think the two colours represented femininity and masculinity. Eventually we called ourselves DAMORE.

So we met somewhere in August 2013. That day I was wearing a grey blazer with the same colour pants, because ms Jacquart is all about colour blocking. I had a thing with turtlenecks, still do this day my closet is full of it. I always felt I had to look my best and be runway ready.
Actually me and Nathan where on the same train to Ostend. He had this bright yellow hair spongebob hair, hazelbrown contact lenses, a peacesign necklace and a grey leopard pull. His energy was overwhelming and I felt an echo of ‘Girl Power’ in my head. I felt immediately the warmth of Nathan’s voice, a very low soul voice and his laugh was pleasant.
We talked for a couple of minutes before our train arrived and then we went to meet up with Chris and his ‘allegedly’ niece...

 

Chris was calm and collected, a huge contrast with our future meetings. Chris is the life of the party and he loves to sing, a very powerful belting voice I presume. That August day he was wearing a grey beanie, had a plain t shirt with black and white horizontal stripes. Chris was only sixteen in that time, Nathan was 19 and I was around 22. We were babies, innocent and a bit naïeve. But we had fire in us and wanted to change the world for the better.
I think that was the moment I came home and felt I met my second family.

 

Dating as a transwoman comes with it challenges also. I feel for the men that do have a “transattraction” without it being a fetisj, but then being inline with their own sexuality.

Straight men are attracted to transwomen, not gay men. I feel that in the gaycommunity it was alla bout being extremely masculine, fit and tall.

A lot of these men don’t have the tools to go through life with this attraction. They are being judged or put into a box.

On the otherside there are also men that we call in slang: down low men. They only want to have a sexual relationship with transwomen without them being seen with them in public.

Saddly enough because a lot of men can’t express them, they at times murder these transwomen they are attracted to. That’s definitly the case for a lot of Black Transwomen.

 

I wish that there was any information for children or individuals that deal with genderdysmorphia.

Dealing with the internal struggles and expressing this to a society where trans individuals were being marginalized or demolished, for just living their life in their truth.

So I felt I lived life for a good two decades on a automatic pilot, saddly enough this is stil lto this day reality for people to survive, not live, but survive.

A huge contrast where I stand today. Keira is a confident young woman with a bright future ahead of herself, because she will never be a victim of society or people that throw their insecurities at her.

She is a Queen of Divas and a warrior because at times I feel that the world still isnt fully embracing of trans or non binary individuals.

 

I always tell people being a transgendered woman its a blessing and a curse at the same time. On so many levels I can understand the defintion of discrimination or phobia, because being you and living your life in your vision comes with challenges. From being misgendered, stared at or even heterosexual men not knowing how to conduct themselves in a public place or in a workplace environment, imagine if they would pursue him as a gay men.

Its also a curse I feel. To not have children with someone I love and to receive a gift God gives you.

Its a realization I made when I transitioned, didn’t know if it had to do with the hormones rushing through my body or just simply age. Maybe it’s a mixture of the two.

I had this motherfeeling and I wanted to have babies with a man I love with my whole essence.

 

[1] Música do grupo Spice Girls, expressão pode ser traduzida como “quer ser”, no sentido do que se espera para o futuro.

 

 

Tradução por: Mirelle Amaral de São Bernardo

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